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Último Dia (Talvez)

Foto do escritor: B. PellizzerB. Pellizzer

Relógio para o fim do (meu) mundo

Era abril, eu acho; maio, talvez, com certeza era uma segunda-feira. Acordei com uma certeza: hoje é o meu último dia na Terra.

Sem drama, sem alarde.

Era só um fato.

Eu acordei sabendo que morreria como quem sabe que o café vai acabar. Era só uma coisa que aconteceria.

Eu não fiquei assustada. A morte parecia tão natural quanto o respirar (eu sei que é uma metáfora clichê) ou o próximo piscar de olhos.

Pensei: “É hoje”. E tudo bem.

Olhei para o lado e vi minhas filhas dormindo. Estávamos amontoadas num AirBnb minúsculo, porque eu não tinha nenhum móvel pra poder me mudar para uma casa, e as duas estavam dividindo uma dessas camas que vem com outra enfiada por baixo, e que fazem as vezes de sofá durante o dia. Nem sei o nome daquele móvel. Mas servia para ver TV, almoçar e dormir.

Meu coração se encheu de amor olhando pra elas.

Foi uma sensação deliciosa. Deliciosa mesmo.

Não as acordei.

Sim, eu olhei para as duas com a certeza de que era a última vez, mas se, até aquele dia, elas não soubessem o quanto as amo, uma despedida apressada não mudaria nada. Era uma sensação estranha, mas verdadeira: o arrependimento por qualquer falha passada não era algo que eu tivesse medo de carregar para a eternidade.

Minhas filhas sabem.

Sabem do meu amor por elas.

E naquele momento, isso era o suficiente.

E se eu tiver que levar um ou outro arrependimento pra eternidade, que seja esse — o de não ter feito uma despedida de novela mexicana.

Levantei, coloquei os fones de ouvido e fui treinar. Porque sim, eu ia morrer, mas só para o caso de eu não morrer, era bom garantir que os agachamentos estavam em dia.

Prioridades, né?

No meio do caminho, mandei algumas mensagens. Nada dramático, nada de "meu Deus, eu te amo, adeus". Isso todo mundo já sabe. Eram mais questões práticas. O livro tá quase pronto, o outro é pra ser publicado quando der. Coisas assim. Minha filha mais velha, com seus 19 anos, já está por dentro de tudo: seguro de vida, contas bancárias, essas chatices que sobram quando alguém morre. Se eu fosse mesmo morrer, não ia sobrar muito o que explicar. Só uns desejos de última hora — tipo aquele livro que eu jurei que ia terminar e, bom... talvez não terminasse.

Só teve uma pessoa, um amigo, para quem eu decidi falar “a verdade”. E fiz isso no caminho de volta do treino. Acho que eu precisava contar pra alguém que eu ia morrer, e eu sabia que ele não surtaria.

Peguei o celular e, com a câmera focada em mim, soltei: "Então... vou morrer hoje. Faz um favor pra mim e..." E aí? Nem lembro o que pedi. Sei que disse que o amava e que ele devia guardar aquele vídeo, porque, se eu batesse as botas, aquilo podia valer algum dinheiro. Afinal, por que não tentar lucrar um pouco com a minha morte?

Ele, claro, não me decepcionou. Assistiu ao vídeo e respondeu como eu esperava: "Obrigado por lembrar de mim no seu leito de morte. Mas, convenhamos, o mês já tava perdido se você não achasse que ia morrer pelo menos uma vez."

O que é uma tremenda injustiça, porque tenho certeza de que aquilo nunca tinha acontecido comigo antes.

De qualquer maneira, com todas as providências para a minha morte tomadas, não me restava muita coisa além de viver o dia.

Eu treinei, trabalhei, jantei e cultivei o amor das minhas filhas um pouco mais.

A morte me ignorou. E eu, que pensei que estava pronta para ela, continuei viva e querendo um dia mais.

O curioso desse dia foi que, mesmo com a certeza de que o fim estava próximo, a vida seguiu. E talvez seja isso. Talvez morrer seja mesmo como respirar, como piscar, como comprar mais meio quilo de café.

Um dia acontece, simplesmente.

E até lá, a gente agacha.

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