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As galinhas do Centro Cívico

Imagem gerada por IA (Ideogram)
Imagem gerada por IA (Ideogram)

Em Curitiba, no Centro Cívico — que eu ainda não sei se é um bairro oficial ou só o nome pomposo do lugar onde estão reunidos os principais prédios governamentais do estado do Paraná — existe uma cena que não deveria fazer sentido, mas faz. E por isso mesmo, encanta. Entre estruturas modernas e cinzentas, onde a cidade se organiza para parecer funcional, limpa e exemplar, o ponto de maior atenção turística não é uma escultura, uma praça, nem o Palácio Iguaçu. É uma casa. Uma casa antiga, dessas que parece casa de fazenda e que, quase sempre, a despeito dos perigos da cidade grande, está de portões abertos. Uma casa que teima em existir ali, na Rua Mateus Leme.


Não é que as pessoas parem pela casa. Ninguém comenta o estilo arquitetônico, a história, o valor cultural. O que faz as pessoas atravessarem a rua, pegarem o celular, avisarem os amigos e marcarem localização no Instagram é outra coisa: galinhas.


Sim. Galinhas. E galos. E garnizés. E ovos. E ciscos. É um quintal vivo. Um zoológico mínimo, absolutamente doméstico. Elas andam soltas, desfilando entre os ferros das grades, invadindo a calçada com mais autoridade que o governador do estado.


Quem já está acostumado não se importa. Nem os moradores da rua, nem os donos de cachorro que passam todos os dias para os passeios matinais, nem os próprios cachorros. Só quem liga pras galinhas e tira as fotos são os visitantes eventuais e os turistas.


Elas, as galinhas, se acostumaram a ser fotografadas, como se soubessem que carregam um certo protagonismo folclórico.

Eu, que já tomei muito corridão de galinha na infância e carrego até hoje um resquício de respeito (medo), ainda não sei se acho fofo ou engraçado. Mas definitivamente acho curioso. E essa curiosidade me coça o pensamento. Porque, veja bem, estamos falando de um espaço urbano sofisticado, cercado por um teatro, uma pizzaria subterrânea com cara de masmorra medieval, um pub irlandês, uma revendedora de carros de luxo, praça, cafés, o coração do poder estadual — tudo isso a poucos passos de distância. Mas o que faz as pessoas pararem de caminhar, olhar, sorrir e atravessar a rua são elas. As galinhas.


O que isso diz?

Diz que, no fim das contas, somos atraídos não pelo inédito, mas pelo vivo. O que nos espanta e fascina não é a tecnologia, a arquitetura, nem o concreto envernizado da cidade planejada. O que ainda nos para — e isso é um alívio — é a simples presença do que vive sem função aparente. A galinha cisca. Não serve pra nada ali. Mas existe. Com corpo, com rotina, com som. Dividem espaço com o gato preto que lambe as patas em cima da mureta de pedra.


Num tempo em que tudo precisa justificar sua presença, gerar resultado, cumprir função, postar conteúdo e otimizar processos... a galinha só é.

Ela não está no Centro Cívico para fazer parte de um projeto. Ela não compõe a paisagem com intenção. Ela cisca. Foge pelas grades. Dorme cedo. Acorda antes do sol. Canta. Caga. Vive.


As pessoas param porque há algo que escapa à lógica. Porque a galinha ali está fora do roteiro. Não tem código QR. Não está no TripAdvisor. Não oferece retorno. Mas oferece uma memória — talvez da infância, da casa da avó, da terra batida e do cheiro do milho seco. Ou talvez ofereça só uma pausa. Um minuto em que você não está produzindo, nem consumindo. Está só olhando. Um bicho vivo, de verdade. Que não quer nada de você. Só ciscando ali, no meio do seu dia de tarefas.

É quase uma subversão. A gratuidade do ser.


As galinhas da Mateus Leme são uma declaraçãoi. Por mais que nos vendam o progresso, por mais que a gente use aplicativos para atravessar a rua e cronômetros para respirar fundo, há algo dentro da gente que ainda responde ao som de um galo. Que ainda se derrete diante da ausência de propósito. Que ainda precisa — mesmo sem saber — ver uma galinha, ao vivo, só pra lembrar que elas existem. E a vida também.

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