O carma não é justiça, é você quando ninguém está olhando
- B. Pellizzer
- 25 de jun.
- 3 min de leitura
Talvez o carma exista. Talvez não. Talvez a pergunta esteja errada.

Sempre gostei da ideia de carma. Não como castigo. Nem como consolo. Mas como uma tentativa de organizar o caos da vida com alguma coerência narrativa. Acontece que a vida não é coerente.
Quem nunca olhou pro mundo e pensou: “Essa pessoa não pode estar impune”, e logo em seguida percebeu que sim, ela está. E vai continuar. Algumas morrem assim: impunes, sorrindo, de mãos dadas com alguém que as ama, cercadas de flores e perdão depois de uma existência inteira ferindo gente inocente.
Se o carma é justiça, ele falha.
Mas... e se o carma não for isso? E se o carma for só o que sobra de você mesmo, depois de todas as decisões já tomadas?
Carma como consequência, não como juízo
Comecei a pensar no carma como consequência, mas uma consequência íntima, quase invisível. Não aquela que vem de fora, como se o universo estivesse anotando em algum livro cósmico cada vez que você mente, trai ou sabota alguém. Essa imagem do universo como um grande tribunal me parece infantil.
Acho mais fácil imaginar que tudo o que a gente faz passa por dentro primeiro. E mesmo que ninguém saiba o que você fez, você sabe. E isso basta pra te moldar. Não se trata de punição. Se trata de resíduo psíquico. O que a gente faz nos transforma. Devagar.
Se você mente todos os dias, vai se tornar uma pessoa que não sabe mais o que é verdade.
Se você fere os outros por defesa, vai se cercar de guerra e passar a achar que todo afeto é ameaça.
Se você vive se desculpando por tudo, vai se convencer de que incomodar é existir.
Carma, talvez, não seja o que você "recebe de volta", mas o que você vira.
E se o universo não se importar?
Sim, é possível que nada disso importe. É possível que o universo não ligue. Que ele não observe. Que não haja nenhum tipo de balança secreta controlando destinos. Que não exista retorno, e que o bem não prospere mais do que o mal, só coincidências estatísticas.
Ainda assim, mesmo num universo indiferente, nós importamos. Nossos afetos, nossas culpas, nossos delírios. Porque somos seres simbólicos, e damos sentido ao que vivemos. Se o carma não vem de fora, ele vem de dentro. Não como uma entidade metafísica, mas como a soma das nossas escolhas silenciosas.
Não é justiça. É memória. É cicatriz. É consciência se formando.
A ignorância talvez seja uma bênção, mas a lucidez é irreversível
Talvez seja mesmo injusto cobrar de alguém uma ética que ela não conhecia. Talvez seja absurdo acreditar em redenção, se tudo o que existe é causa e consequência.
Mas eu, que já fiz muita merda — não por maldade, mas por medo, ignorância ou cansaço —, sei que me tornei outra depois de olhar pra elas. Não por castigo. Mas porque olhar transforma.
Porque depois de ver o que fui capaz de fazer, eu não pude mais ser quem eu era antes.
E isso, pra mim, é carma. Não o preço pago. Mas o rastro deixado. Não a punição. Mas o reflexo.
O carma não é um juízo final. É só você, quando ninguém mais está olhando.










"E se o carma for só o que sobra de você mesmo, depois de todas as decisões já tomadas?"
Grato por saber que o que restou daí decidiu escrever; e não bastasse, faz isto com maestria.
Baita texto, linha de raciocínio impecável e tão leve quanto profundo.
Então deixo aqui um singelo
PUTA QUE PARIU.
Parabéns pela tua arte.