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O hábito de atravessar a rua

(e outras formas elegantes de fugir de si mesmo)


Imagem: Pikisuperstar/Freepik
Imagem: Pikisuperstar/Freepik

A gente tem mania de fugir. Fugir do incômodo, da dor, da responsabilidade, da conversa atravessada. A gente foge do vizinho chato, da ligação de telemarketing, da mensagem não respondida, da visita ao dentista depois de sentir aquele lascadinho no dente que avisa que tem coisa errada acontecendo.

E o pior: a gente ainda inventa mentira pra justificar essa fuga. E nem chama de mentira. Chama de direito. Chama de “me preservar”. Chama de “não é o momento”. E segue vivendo.


“Não estou fugindo”, a gente diz pra si mesmo.“ É o vizinho que é inconveniente.” “É meu direito não atender ligação.” “Se fulano quiser conversar, que venha ele até mim.” “O dente? Ah, deixa pra depois. Nem dói tanto assim. Não vou pensar nisso agora.”


E então seguimos, empurrando pro nosso eu do futuro. Porque lidar agora parece exigir mais do que a gente acha que pode dar. Mas o tempo passa, e um dia a dor do dente vira canal. O vizinho vira um problema. A conversa não tida vira uma ruptura. E a ligação ignorada era a última tentativa de alguém de se manter por perto.


Olhar pro outro lado virou instinto. A gente desaprendeu a encarar.

Talvez porque viver dói. Dizer “não” incomoda. Assumir que não quer conversar, que não quer agradar, que não quer estar disponível o tempo todo… parece rude demais.

Estamos tão condicionados a sermos agradáveis, polidos, toleráveis, que desaprendemos a ser sinceros. A resolver o que precisa ser resolvido, de uma vez por todas, sem rodeios, sem protocolo, sem fingir que está tudo bem quando claramente não está.


É como se fôssemos educados para a diplomacia emocional — aquela que exige que você sorria enquanto engole um incômodo, que você diga “imagina, não foi nada” enquanto sua vontade é gritar que foi, sim, e que já passou da hora de mudar.


A verdade é que seria mais barato, mais leve, menos cansativo… só fazer o que precisa ser feito. Vai no dentista. Faz o check-up. Fala o que precisa falar. Diz o que sente, mesmo que tremendo. Fecha ciclos. Dá limite. Toma a porra da decisão que você tá adiando há meses porque tem medo de como vai ser depois.


E não, eu não estou falando só de dentista.

Tô falando de tudo que a gente posterga por medo de ser honesto com os outros, mas principalmente consigo mesmo.


O que nos impede de dizer sim ao que é sim, não ao que é não, e foda-se pro que nem merece nosso sim nem nosso não?


A resposta parece simples, mas é assustadora: a gente. Somos nosso próprio obstáculo. Nosso primeiro censor. Nosso juiz mais cruel e, ao mesmo tempo, nosso cúmplice mais covarde.

Fomos treinados pra evitar conflito. Desde cedo, aprendemos que é melhor engolir do que enfrentar. Que é mais educado sorrir do que dizer “não gostei”. Que é mais prudente se calar do que mostrar onde dói.


E então a gente aprende truques. Truques de fuga.

Mudar de calçada pra não cruzar com o vizinho. Ajustar a rota, o horário, o caminho, só pra não ter que dizer: “Desculpa, não posso parar. Não tenho tempo pra conversar. E, sinceramente, não tô a fim de falar contigo.”

Mas ninguém ensina que quanto mais a gente evita, mais a vida se repete. E a gente repete junto. Muda o endereço, o telefone, os vínculos…mas leva a si mesmo junto. E aí, inevitavelmente, começa tudo de novo.

Porque ninguém foge de quem é.

Ninguém.


Você pode evitar o outro, o telefone, o espelho. Mas, em algum momento, vai precisar encarar a parte de você que ainda treme diante da responsabilidade de se bancar.

E essa parte, a mais fugidia, é também a mais perigosa. É ela que te convence de que fugir é autocuidado. Que ceder é empatia. Que sumir é maturidade. Que silenciar é sabedoria.

Só que não é.

É medo disfarçado de virtude.


Então aqui vai uma sugestão indigesta, mas necessária: da próxima vez que você cruzar com a versão de você que tem medo de encarar a verdade, atravesse a rua.

Não ande com ela.

Não converse.

Não ouça.

Essa versão não é boa companhia. Ela gosta de jogar a culpa nos outros. Gosta de se fazer de vítima e repetir os mesmos erros esperando que, dessa vez, doa menos.


Saiba quem você é. Admita onde dói. E se puder, resolva.

Resolver não é abandonar o medo. É agir apesar dele.

É isso que te poupa aborrecimento: coragem com endereço certo.

E, com sorte, um canal a menos pra tratar.



Pense em algo que você vem evitando há dias. Uma conversa, uma decisão, uma escolha adiada.

Agora se pergunte, com honestidade: “Eu tô realmente me protegendo… ou só tô com medo de encarar o que isso vai exigir de mim?”

Escreva a resposta num papel. Sem filtro. Nem que depois você rasgue.


Às vezes, a travessia começa com uma pergunta bem feita.

E coragem, quase sempre, é uma rua que a gente atravessa sozinho.




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