Quando é que a ignorância vira bênção?
- B. Pellizzer
- 18 de jun.
- 3 min de leitura

A dádiva de não saber
Tem dias em que eu queria ser alface.
Não é metáfora. É desejo mesmo: nascer, crescer, ser regada e, um dia, partir. Sem grandes perguntas. Sem necessidade de provar nada. Sem a carga de ter que deixar um legado.
Ser planta me parece, às vezes, um alívio. Talvez até ser bicho servisse — acordar, procurar comida, encontrar um corpo quente, dormir. E no dia seguinte, tudo outra vez. Sem pressa. Sem planos. Sem culpa.
Viver com o mínimo de consciência… talvez seja isso que querem dizer quando repetem que a ignorância é uma bênção. Porque é.
É bênção não saber. É bênção não entender. É bênção não carregar o mundo inteiro dentro da cabeça.
Se eu não soubesse o que está acontecendo. Se eu não compreendesse a dança sutil das máscaras. Se eu não enxergasse, com tanta nitidez, o que é falso, o que é pose, o que é vazio travestido de importância… talvez eu só existisse. E isso, quem sabe, fosse o bastante.
Mas eu não sou ignorante. E, às vezes, isso pesa como uma sentença.
O cárcere do propósito
Inventaram uma história bonita sobre o tal do propósito.
"Encontre seu propósito e tudo fará sentido."
"Quem vive com propósito não trabalha um dia sequer."
É poético. E perigoso.
Porque o propósito, ao invés de libertar, aprisiona. Te dá um nome e, junto dele, um papel. E, de repente, você é aquilo o tempo todo. A função. A entrega. A constância.
Você não pode se ausentar. Não pode falhar. Não pode sentir tédio, raiva, desânimo. Porque agora tem algo “maior que você” te observando de cima, te cobrando: "Não era isso que você queria tanto?"
E era.
Mas virou obrigação.
Você acorda e sente que deveria estar criando. Que precisa entregar. Que não pode decepcionar. Porque há um ideal plantado dentro de você, e agora ele floresce como vigilante.
Parabéns: você virou mártir da sua própria missão.
Às vezes penso que teria sido mais leve nunca ter encontrado propósito algum. Permanecer vazia talvez fosse, ironicamente, uma forma de liberdade.
Lucidez é maldição
Pouca gente diz isso em voz alta: a lucidez não salva. Ela vigia.
Mesmo nos dias em que tudo dentro de mim implora por silêncio, quando eu só queria encostar no tempo e deixar que ele passasse por mim, eu sei.
Eu sei o que está acontecendo. Eu sei por que estou parada. Eu sei o que essa pausa carrega. E sei o quanto me cobro por ela.
Às vezes, nem descansar é possível. Nem sofrer em paz. Porque eu não consigo parar de entender. Não consigo desligar. O pensamento não tem botão de pausa.
E talvez eu enlouqueça. E talvez, mesmo enlouquecendo, continue lúcida, a pior combinação possível: viver um delírio e, ainda assim, saber que é delírio.
Às vezes tudo que eu queria era um pano grosso de não saber, um blackout suave dentro da alma, um esquecimento gentil das coisas que me pesam.
Mas não. Me deixaram aqui: acordada, consciente, inteira. E exausta.
E agora?
Agora, eu escrevo.
Não por catarse. Nem por consolo. Mas porque é isso que posso fazer com essa lucidez que me sobra.
Se você chegou até aqui, talvez conheça esse lugar. Talvez também tenha perdido a chance de ser ignorante. Talvez também sinta inveja dos alfaces, dos gatos e dos homens que andam pelo mundo sem nunca pensar em nada.
Eu não tenho final bonito. Nem promessa de luz. Nem solução.
Só isso: talvez a ignorância seja mesmo uma bênção. Mas quem não foi abençoado precisa continuar. Com lucidez. Com propósito. Com dor.
E com palavras.
Porque às vezes, elas são o que nos resta entre o peso de saber e a impossibilidade de esquecer.
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